Vida de Pai

Arquivo : novembro 2012

De coleirinha ortopédica
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Renato Kaufmann

O médico tinha dito pra ela ficar uma semana sem ir pra escola, pra evitar novos impactos. Quinta à noite e ela já estava engatinhando no chão e pulando no sofá, toda sapeca. Incrível esse fator de cura das crianças. Físicos ou emocionais, a maioria dos machucados sara a olhos vistos.

Não tive dúvidas: vai pra escola sim. E sexta de manhã lá estava ela, de uniforme e coleira ortopédica, com uma flor que a gente desenhou no dia anterior. Foi toda feliz, com o ibuprofeno à tiracolo em uma bolsinha de coruja,. Ela se sente mais responsável levando o próprio remédio.

Chegando na escola, aquilo parecia uma corrida de caminhoneiros bêbados, criança correndo pra todo lado. Pronto, vão atropelar ela de novo. Me deu um frio na barriga. Um golpe duro na minha certeza paterna, mas afinal, certeza é um luxo. Vida de pai.


Amores brutos
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Renato Kaufmann

Aí a Lucinha veio dolorida da escola, não conseguia mexer o pescoço. Como não melhorou, levei ela pro hospital.

Fizemos raio-x, e falei que a gente ia tirar uma foto de dentro dela, que perguntou se ia precisar sorrir. Falei que não precisava, mas ela sorriu mesmo assim.

Saiu de lá com um colar de espuma, que vai ter que usar por uma semana.

E olha que irônico: ela se machucou quando seu querido príncipe correu em sua direção… mas sem olhar pra onde ia,  atropelou ela como um caminhão desgovernado.

O amor é mesmo um negócio violento.


Está tudo desenhado
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Renato Kaufmann

Ilustração: Eduardo Souzacampus

-O que é esse desenho, filha?
-Essa sou eu quando era pequena e tinha cabelo curto. E essa sou eu agora com cabelo comprido. Queria fazer esse desenho pra você no seu aniversário de quando você era pequeno, mas eu ainda estava na barriga da minha mãe. Por isso só fiz agora.

-E esse aí?
-Esse é um monstro de um olho só. E essa pequenininha sou eu, fugindo dele.
-E por que ele queria pegar você?
-Porque eu entrei na casa dele.
-E por que você entrou na casa dele, sua maluquinha?
-Eu queria ver as coisas dele. Mas tinha pouca coisa.

-E o desenho vermelho?
-Essa é a supermulher maravilha de plástico. Ela é uma super-heroína que fica muuuuito brava quando jogam plástico fora da lata vermelha.

-E esse?
-É uma coisa que você não sabe ainda.
-Filha, tem muita coisa que eu não sei, esse desenho teria que ser gigante.
– Mas eu só tinha esse papel, pai.

-E esse?
-Esse sou eu, você e a mamãe, quando a gente morava todo mundo junto. Mas agora eu tenho duas casas, né?
-Tem sim. Você e o Quinquin.
-Hahahaha, é mesmo, o Quinquin também.

-E esse daqui é o que?
-Esse sou eu e a Maricota, minha irmã. Eu tenho saudades dela.
-Eu também, filha, eu também. Vamos convidar ela pra almoçar com a gente?
-Vamos! Ebaaaaa!

 


Risco de vida para pais
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Renato Kaufmann

O mais certo seria dizer risco de morte. Risco de vida quem tem é espermatozóide.

Enfim, mandei as fotos do salto, todo orgulhoso ali em cima das nuvens.
Meu pai respondeu com um puxão de orelha: “você não acha que a Lucia ainda é muito nova pra você se arriscar dessa forma”?

Como um bom filho, minha primeira reação foi rebater tudo:  é mais perigoso dirigir até o aeroporto que saltar de paraquedas e que nunca vai ter uma idade da Lucia em que eu vou dizer “se eu morrer agora tudo bem, então já posso saltar”.

(Essa é a hora que você se dá conta que o avião foi embora e que, em vez de mochila com paraquedas, você colocou um maluco nas costas.)

Mas quanto mais passam os dias, mais parece que ele tem razão. A Lucia é mesmo muito nova pra ficar sem mim.

Aí fica a dúvida:
– Melhor evitar  riscos desnecessários?
– Esperar vinte anos?
– Ou tudo bem se for pra realizar um sonho?

Queria ouvir a opinião de vocês.
Podem  comentar aí embaixo.


Gosto de nuvem
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Renato Kaufmann

Olha, aventura mesmo é ter um filho.
Mas essa aqui chega perto, em segundo lugar.


Surdez Musical
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Renato Kaufmann

Vida de Pai: baterista

Ilustração: Eduardo Souzacampus

Eu adoro música. Infelizmente, até campainha desafina quando eu toco. Me faltam algumas coisas básicas, como coordenação motora, ritmo e a capacidade de diferenciar as notas musicais. Assim: quando eu canto do-ré-mi-fá, elas parecem diferentes umas das outras, por comparação. Agora, o conceito de que uma música toda possa ser em “Si bemol” ou “Lá sustenido” me escapa por completo.

Dó é uma sensação de pena. É quando a Lucia fala “mas que peninha de galinha”. Ré é quando o carro anda lá pra trás até acertar uma parede. Mi é o som que o meu gato faz, o Lacan. Ele mia pela metade. Fá, sei lá, é a letra de Psycho Killers.  Sol obviamente é um anão amarelo com plasma quente entrelaçado com campos magnéticos. Lá é um lugar que não é aqui e portanto pode ser o Sol. Si é uma coisa, assim, autocentrada. E dó (não sei porque sempre repetem dó no final) é o que as pessoas sentem ao me ouvir cantar.

Menos a Lucia. Como eu faço lavagem cerebral desde pequena (leia-se cantar pra ela), ela não reclama que eu canto mal, apesar de muitas vezes se irritar com a minha escolha de músicas, ou com o fato que, sem lembrar direito da letra, eu acabo inventando um pouco. Ela fica irritada e me corrige: “O galo não usa mocotó, paaaaaai”

Um ano atrás, ela ganhou uma bateria de presente. Não sei se é talento dela ou falta de discernimento minha, mas acho tudo de uma sonoridade ímpar. E, nas horas vagas, o prato da bateria serve outro tipo de refeições.


Queda Livre 2
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Renato Kaufmann

Ainda não desisti dessa ideia de saltar de paraquedas.
Se esse aqui for meu último post, é porque fui fatalmente vencido pela lei da gravidade.

Nesse caso:
– Digam pra Lucia que eu a amo muito
– Alguém adote meus gatos
– Últimas palavras: “Juro que não tive medo. Por favor, ignorem minha cueca. Ela mente.”


Queda livre
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Renato Kaufmann

Vou aproveitar o feriado, que infelizmente vai ser sem a Lucinha, para realizar um sonho: saltar de paraquedas.

Contei pra minha mãe, ela disse “mas você tem uma filha pra criar!”. Tentei explicar que vou saltar com paraquedas, e não sem. Ela não gostou do comentário.

Falei pro meu amigo Tequila que ele deveria vir junto e usar um paraquedas especial – o “paraquedas de cabelo”. Ele não gostou da piada.

Espero que o tal do paraquedas abra normalmente. Vai saber que coisas esses dois falariam pro meu biógrafo.


Hora da história
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Renato Kaufmann

Vida de Pai - hora da história

Ilustração: Eduardo Souzacampus

Quando eu era criança, minha mãe contava muitas histórias pra gente.  Mas tinha um tipo de história que eu gostava mais que de todos os outros – as do Quinquin. Por alguma razão, eu me identificava com ele.

Em uma, o Quinquin tinha brigado com os irmãos. Em outra, ou outras, fez xixi na cama. Quinquin ia visitar a avó dele. E que coincidência que eu tivesse passado por aquilo há poucos dias. Uau. Eu e o Quinquin, tudo a ver.

Com a Maria, minha enteada, eu tinha uma versão disfarçada – eram histórias de piada. Se a galinha quisesse atravessar a rua, ela precisava enfrentar uma jornada do herói digna de Campbell, cheia de perigos e crescimento, desertos, coincidências… e mais desertos. Às vezes, ela dormia antes de todo mundo sair da areia. E tinham as piadas de louco, que davam um exercício quase dadaísta.

Minha mãe continuou a sua tradição com o Samuel, meu sobrinho. Um dia, a mãe do Quinquin apareceu e contou pra ele uma história. Uma história de Samuel. O menino arregalou o olho e ganhou um belo nó na cabeça, tentando descobrir quem era o sábio chinês e quem era a borboleta.

E eu, quando descobri que minha mãe contava histórias do Quinquin pra Lucia, de súbito me lembrei dele. Sabe aquela sensação de quando aquilo em que você não pensava há anos volta de repente à sua cabeça? E minha primeira reação foi: “ahhhh, eu também quero!”

Assim, reapareceu o Quinquin. Ele ganhou um triciclo. Fez arte na escola. Por conta da separação, ele tinha duas casas, “nossa, duas casas, que legal, hein Lucia” e ela de olhão arregalado querendo mais histórias. Semana passada, ele caiu da cama. Ela ficou surpresa e levantou a sobrancelha: “ahhh, eu também caí da cama”.

Talvez ele esteja com os dias contados, e a Lucia perceba o truque mais cedo que eu. Ela é muito esperta, enquanto eu mal desconfio de coisas como “um dia, o Quinquin não queria mais fazer a barba”.

“Então, o Quinquin escreveu um texto agradecendo a mãe dele por trazer um personagem tão querido para a nossa família.” Ei, espera aí!


Horário de verão 2
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Renato Kaufmann

Cheguei em casa, Lucia estava montando Legos, toda entretida. Sentei pra montar junto. Aí eu olho pra ela e digo, “Lucia, está faltando uma coisa”. “O que, paaaaai???” “Ora, está faltando o meu beijo!”. Ela olha pra mim e diz “Mas como você é esquecido, paaaai!”. E me estala um beijo na bochecha.

Eu ainda odeio o horário de verão, mas graças a ele eu chego em casa em dias de rodízio e ainda pego ela acordada. Isso me deixa tão feliz que no dia seguinte consigo dar uma de Poliana até com esse grande inimigo do meu sono.