Lontras, mendigos bêbados e mães selvagens
Renato Kaufmann
Depois do terrível incidente no carro, não podia deixar de compartilhar esse capítulo do livro ''Como nascem os pais'':
''Tudo começa centenas de anos atrás, com a domesticação das codornas, ou milhões de anos atrás, com a presumida domesticação dos bebês. Seguindo essa tradição, Lucia, que pertence ao segundo grupo, comeu ontem pela primeira vez um ovinho de codorna.
Meia hora depois, sento a pequena na cadeirinha, pra ela acompanhar o jantar da irmã e se sentir participante. Aproveito e dou um ovinho na mão dela, que o devora como uma selvagem. Achei que ia engasgar e que seria necessário desentupi-la com roto-rooter, mas bebê tem que aprender a comer, né. Ela mesma deu um jeito, cuspindo um pedaço no chão, que se juntou aos outros que caíram esfarelados. Como caiu, dei mais um, é a coisa mais linda ver essa menina comendo com as mãozinhas, parece uma lontra.
Aí dona mamãe chega do trabalho e aproveito pra limpar a sujeira de ovos no chão. Sem ter a importante e necessária sujeira como indicador, mamãe tem a mesma idéia genial, de modo que lontrinha come mais três ovinhos. Chegada a hora de dormir, zureta de sono, toma meia mamadeira e capota no berço tal qual um mendigo bêbado.
Lá pelas onze ela dá uma choradinha e pára. Em geral a gente deixa, porque ela volta a dormir sem precisar de atenção, às vezes só de entrar no quarto ela olha e, sentindo-se novamente segura, cai de cara na ovelhinha de pelúcia, adormecendo no meio da queda. Mas dessa vez fui ver.
Encontro a Lucia vestindo o capuz da blusa, sentada no escuro e dizendo coisas ininteligíveis, parecia o Charlie do Lost na fase heroína. Verifico a fralda e sinto um molhado na roupinha. Afasto a mão sem querer e sinto um molhado extenso na cama. Penso “putaquepariu será que o bebê está derretendo ou é a maior diarréia do planeta?”
Acendo a luz e vejo horrorizado que ela estava completamente vomitada, a cama, a ovelhinha, a proteção do berço, tudo encharcado, vômito no cabelo, olho, nariz, orelha; uma cena de partir o coração.
Calmamente chamo: “gatinha, vem aqui um instante, sim?”. Ela arregala os olhos e logo vai lavar a Lucia no banheiro enquanto eu esquento água pro banho. Como mãe que é mãe ou sente ou inflige culpa (ou ambos), ouço a mãe ralhando consigo mesma, ela que é sua juíza mais severa, pedindo desculpas à Lucia até pela mera existência das codornas.
Eu digo que precisamos dar água pro bebê, pra não desidratar. Ela pede pra ligar pro veterinário. Nos segundos que levo pra achar o telefone na agenda já levo uma bronca por estar demorando muito pra ligar. Explico ao bom doutor que ela comeu muito ovinho e vomitou mas parece ok. Ele diz que o importante é não desidratar e se precisar pode dar Dramin. Sou obrigado a perguntar se é possível que ela tenha aspirado vômito com consequências pavorosas. Ele diz que é possível, mas que é muito raro, que acontece mais com pessoas em coma. Mamãe fica com raiva de mim e do médico. Acho que ela esperava ou “impossível” ou “leve-a já ao hospital”
Tentamos dar água de coco, mas o bebê vomita de novo, em jorros e eu horrorizado pensando como é que cabe tanta coisa dentro de um bebê tão pequeno. Será que ela guardou vômito em um portal intradimensional, especialmente pra soltar tudo nessa ocasião? Será que ela é oca e dentro dela é tudo estômago?
A essas alturas dona mamãe está muito brava e irritada. Na quinta patada que levo explico que o foco tem que ser o problema da Lucia e não a reação materna a isso. Ela rosna ameaçadoramente pra mim, que não tenho senso de oportunidade algum.
Lucia dá umas risadas e parece sinceramente aliviada. Entendo bem isso, nada melhor que a sensação de não precisar vomitar mais. Quantas noites não dormi abraçado de conchinha com a privada?
Compelido a ligar novamente pro médico, conto que vomitou de novo e pergunto o que fazer se vomitar o remédio. A mãe fica emputecida de eu dizer pro médico que a pequena parece melhor, dizendo que odeia como eu atenuo as coisas, e que a Lucia pode ser sub-tratada por causa disso. Respondo que eu é que odeio como ela exagera as coisas, que a Lucia pode acabar sendo over-tratada por isso e que imaginar uma possibilidade não basta pra que seja uma preocupação válida.
Lucia, bem melhor mas zonza de sono, recusa-se a beber qualquer coisa e adormece no colo da mãe. Tento pegar a bebê pra levar pro berço e quase perco a mão. Dona mamãe fica as próximas duas horas com a pequena no colo, fazendo carinho e rosnando pra quem chegar perto. Por fim resolve dormir na sala, com a bebê no cercado, por via das dúvidas.
Comento que a pequena estava um pouco fria e pálida (olha que burro) e ela logo pega o telefone pra ligar pro médico “a bebê está fria e pálida!!!” Tento explicar que a parte dela que está coberta está quentinha, e qualquer um que vomitar desse jeito fica pálido mesmo, mas preocupação de mãe é uma coisa límbica, de cérebro reptiliano. A razão só vem alguns cérebros evolucionários depois e não pra todo mundo. O pediatra, tendo sido informado da quantidade exata de ovinhos, disse entre um bocejo e outro que achava que não era suficiente pra ela passar mal, e que pode ter sido excesso de comida mesmo.
Deitamos ambos no sofá, olhando a pequena dormir. Aliviada por não se sentir mais a causa do revertério, dona mamãe pede desculpas por ter sido tão agressiva. E eu, feliz por estarem finalmente ambas bem, durmo como o amigo do mendigo bêbado, aquele que fugiu com a garrafa de cachaça e desmaiou no viveiro das lontras.''